sábado, 15 de outubro de 2011

Artigo - Filosofia do Direito

DIGNIDADE DA PESSOA HUMANA E UM PENSAMENTO DE VANGUARDA

Adriano de Oliveira Martins, mestrando do Univem
João Pedro de Oliveira Borges, acadêmico do Univem

Palavras-chave: 1.Dignidade da pessoa humana 2. reflexão 3. método científico

RESUMO
Busca-se demonstrar a importância da necessidade da compreensão da ciência do Direito à luz da dignidade da pessoa humana, sobretudo, o conceito objetivo do que significa dizer que prezou-se pela sua aplicação em detrimento do dogmatismo, isto é, utilizando sempre a reflexão e a interpretação pragmática em detrimento do apego ao dogma. É demonstrado a necessidade da diferenciação da ciência do direito como uma ciência do dever ser, portanto, advindo desta proposição, extrai-se seu reflexo e valoração tendo em vista o conceito de Ética e moral. Por fim indaga-se se é possível a existência da ciência, do método científico e do empirismo como dispositivos de cognição e feitura de juízo no campo do bem estar humano, destacando que, em verdade, se existe um pressuposto altruísta, visando o bem comum, a universalização de um instituto que dignifica a história do homem, é possível convergir e, sim, é possível conferir cientificidade às decisões sem que estas percam seu caráter humano.

INTRODUÇÃO

Quando buscamos obter um entendimento mais profundo do significado do nosso Direito, enxergar o espírito das nossas leis, alcançar de fato a compreensão do que poderia ser denominado como dignidade humana, espírito fraterno, amor à igualdade como outrora procuraram demonstrar os filósofos do iluminismo, Montesquieu, Voltaire, Rousseau, até mesmo alguns arautos das ciências naturais como, Einstein e Sagan, é necessário compreender o que está pressuposto a ele, qual é o significado de se dizer “tenho um direito”, “você tem um direito”, “vá procurar os seus direitos” antes do Direito per se existe o Direito pressuposto.
Sem esse tipo de interpretação nossa forma de lidar com os dispositivos de lei teria pouca diferença das ciências exatas, o que na opinião de muitos empobrece a ciência do Direito, pois, as relações humanas são únicas, o que é tutelado, como o grande mestre, Professor Goffredo da Silva Telles Júnior, por vezes procurou demonstrar, é a salubridade de nossa própria convivência:

Durante os cinco anos do Curso, matérias muitas e diversas são explicadas e estudadas. Mas vocês vão ver que todas elas se prendem umas às outras. Embora cada matéria tenha seu objeto específico, todas elas se relacionam pelos seus primeiros princípios, pelos seus fundamentos, pelos últimos fins. Elas são ramos múltiplos de uma só árvore: da árvore da Ciência do Direito. Em verdade, podemos até dizer que, durante todo o multifário curso da Faculdade de Direito, o de que se estará sempre cuidando é da Disciplina da Convivência Humana.[1]

Cada caso possui um valor diferente, é dotado de peculiaridades diferentes, em verdade, quando uma pessoa tem um direito violado, ainda que irrelevante na visão do seu próximo, para ela aquele direito é o mais importante do mundo, portanto, cabe ao operador do direito extrair dos nossos dispositivos de lei, dos nossos princípios norteadores de direito, a melhor forma de alcançar justiça.
Malgrado a ciência do Direito não seja exata, existe uma chaga em nosso ordenamento jurídico, não única e exclusivamente nele, pois provém de um problema no seio social que se distribui lentamente, pouco visível aos olhos, mas que causa um mal terrível, por vezes impossível de combater pois não é incomum vê-lo disfarçado de um doce deletério. Enquanto o direito à vida, à liberdade, à igualdade, à segurança e a propriedade são violados, todos os dias, não pelo descumprimento da lei, mas pela mão invisível do cotidiano, da passividade, da indiferença, nos vemos receosos de lidar com situações que possuem talvez, um “respeito automático” inserido em nosso subconsciente.
No Brasil somos pródigos em legislar sobre muitos assuntos, no entanto, nossa Constituição Federal, nossa Lei Maior é uma peça rara, um artefato impar, em que pese não podermos nos dar ao luxo de vangloriar-se da conjuntura sob a qual encontra-se nosso judiciário, isso não muda a singularidade de uma Constituição que surgiu sob o princípio da fraternidade e da dignidade da pessoa humana, que sempre pôde nos presentear com a mais pura expressão de justiça quando interpretada de acordo com o espírito de sua criação. Será que nosso entendimento científico atual ainda não é suficiente para nos dar parâmetros para discernir entre o que é bom e o que é ruim, o benéfico e o prejudicial, o que honra e o que denigre a dignidade de um ser humano?
Por vezes nos deparamos com situações que demonstram que esse “receio” é muito prejudicial, cito o caso da decisão pela permissão da utilização de pesquisa de células tronco embrionárias no Brasil, o decisão sobre a progressão de regime prisional, sobre a fidelidade partidária, sobre o racismo e o anti-semitismo, demarcação de terras indígenas, enfim, algumas destas decisões tiveram grande dispêndio de tempo e energia, não é que não exista mérito nessa devida atenção, mas o que preocupa é que em um país onde falta atendimento médico adequado aos menos favorecidos, onde ainda existe escravidão, fome, tráfico, onde a corrupção toma conta e pouco a pouco perde seu quê de absurdo, onde morre mais gente com enchente do que na maioria das catástrofes naturais que ocorrem pelo mundo, se controverta tanto a respeito de aborto de anencéfalo, sobre união civil entre pessoas do mesmo sexo, sobre os direitos previdenciários delas, sobre direitos que são individuais, e não tem correlação nenhuma com o bem estar geral. Magnífica a recente decisão do supremo reconhecendo os direitos inerentes a estas pessoas, pois, são personalíssimos, saindo um pouco da esfera tupiniquim, existe muita relutância quando a discussão versa sobre a cultura de um povo, neste caso, é necessário ponderar se esse respeito automático a cultura é benéfico.
Nos deparamos com homicídio de seres humanos para rituais religiosos, exclusão da mulher, escravidão, uso de terapias alternativas (sem nenhum tipo de comprovação científica) para cura de doenças graves, sobretudo, ministradas por pessoas sem preparo algum a outras pessoas também sem preparo algum, isto é, não tem parâmetros para saber como estão sendo tratadas, racismo e por vezes danos irreversíveis à integridade física e tratamentos degradantes ao ser humano, tudo isso muitas vezes com o apoio do Estado soberano.
Há quem diga que a Ciência, sobretudo a compreensão do universo através do método científico, mesmo sendo provida do melhor sistema de autocorreção e explicação que possuímos não é capaz de fazer juízo de moral, a respeito da relatividade dos valores morais e justeza absoluta, e como bem lembrou o Ministro do STF Carlos Ayres Britto no seu voto sobre a demarcação na área da Raposa Serra do Sol, “Kelsen, sempre ele” pondera:

Não se aceita de modo algum a teoria de que o Direito, por essência, representa um mínimo moral, que uma ordem coercitiva, para poder ser considerada como Direito, tem de satisfazer uma exigência moral mínima. Com esta exigência, na verdade, pressupõe-se uma Moral absoluta, determinada quanto ao conteúdo, ou, então, um conteúdo comum a todos os sistemas de Moral positiva. Do exposto resulta que o que aqui se designa como valor jurídico não é um mínimo moral nesse sentido, e especialmente que o valor de paz não representa um elemento essencial ao conteúdo de Direito. [2]

Ainda, para Kelsen, a ciência:

"Não tem de decidir o que é justo, isto é, prescrever como devemos tratar os seres humanos, mas descrever aquilo que de fato é valorado como justo, sem se identificar a si própria com um destes juízos de valor" [3]

O valor vem antes do princípio, de fato, o ideal de justiça não é absoluto, não é possível universalizá-lo tendo em vista que não nos é dado método para racionalizar algo deste modo, metafísico, portanto, a norma positivada sempre estará ligada a um pressuposto, mas que como um dos maiores cientistas de todos os tempos gostava de dizer, Carl Sagan, trata-se de um enorme “dragão invisível” analogia que ele usava para descrever uma proposição não falseável, isto é, fora da possibilidade de análise à luz do método científico, a rigor, não passa de uma crença e aos olhos da ciência ainda não tem significado, porém a despeito disso Kelsen aduz que, em poder do conhecimento dessa separação nos é lícito conferir uma validade relativa aos valores de justiça:

Se, no problema da justiça, partimos de um ponto de vista racional-científico, não-metafísico, e reconhecermos que há muitos ideais de justiça diferentes uns dos outros e contraditórios entre si, nenhum dos quais exclui a possibilidade de um outro, então nos será lícito conferir uma validade relativa aos valores de justiça constituídos através destes ideais. [4]

A respeito da relatividade dos valores de justiça, não existe nada mais notório, pensar de forma diversa seria pura crença sem evidência, levando em consideração que neste diapasão fica claro que o Direito não pode pura e simplesmente encontrar sua justificação na moral, eis que ela não é absoluta, por outro lado existe a concepção de que fora da moral ele seria configurado injusto, e aqui é que ressalto o ponto para deixar esse pensamento pairar um pouco sobre nossas cabeças.

1 ÉTICA, MORAL, DIREITO E MÉTODO CIENTÍFICO

É necessária essa discriminação tendo em vista o caráter reflexivo e estrito que se propõe, ademais, a interpretação destes à luz da temática tratada é reveladora. Somente é possível falar de ética, quando se fala em seres humanos, eis que ética pressupõe uma capacidade de valoração, de julgamento e avaliação, portanto, compreende-se a autonomia dando viés à liberdade, nesse diapasão, sempre com grande maestria leciona o grande professor Mario Sergio Cortella:

A ética é um conjunto de princípios e valores que você usa para responder as três perguntas da vida humana: Quero? Devo? Posso?
O que é a moral? A prática da resposta.
Nós vivemos muitas vezes dilemas éticos. Há coisas que eu quero, mas não devo. Há coisas que eu devo, mas não posso. Há coisas que eu posso mais não quero. Quando você tem paz de espírito? Quando tem um pouco de felicidade? Quando aquilo que você quer é o que você deve e o que você pode.[5]

Em seguida, buscando sintetizar o conceito:

Portanto, o que é ética? São os princípios que você e eu usamos para responder o Quero? Devo? Posso? É preciso remarcar: isso não significa que você e eu não vivemos dilemas. Eles existem, e serão mais tranquilamente ultrapassados quanto mais sólidos forem os princípios que tivermos e a preservação da integridade que desejarmos. [6]

Nesse sentido, verifica-se que do ponto de vista teórico, ética e moral são diferentes, como o nobre professor leciona, a moral é o proceder da ética, sua prática. Determinado sujeito possui uma conduta e nisto compreende-se a ética como os princípios que orientam essa conduta. Indaga-se, existe possibilidade de existência da construção e interpretação das normas, talvez até o juízo de moral, isentos destes princípios? A ciência pode fazer juízo de moral? Isto não significa dizer que, deste ponto de vista, existirão respostas para todas inquietações, significa apenas admitir que se questões afetam o bem estar humano, então elas possuem respostas, mesmo que ainda não sejamos capazes de encontrá-las. De forma análoga se compreende os porquês da diferença de se trabalhar com Direito, velha lição kantiana, a matemática, a física a química são ciências “do ser”, já a lei jurídica, por sua natureza, anuncia ou descreve como as coisas devem ser. Portanto, o Direito é uma ciência do “dever ser” e é por isso que muitas vezes há uma não correspondência entre a realidade que vivemos e o que diz a lei.
A lâmina fria do método científico, por outro lado, não lida com a moral, não emite julgamento, apenas lida com fatos, deste modo, pode-se conceber analogicamente que quando o Direito é compreendido como forma e não como conteúdo encontramos uma composição, nas palavras de Kelsen:

Quando se entende a questão das relações entre o Direito e a Moral como uma questão acerca do conteúdo do Direito e não como uma questão acerca de sua forma, quando se afirma que o Direito por sua própria essência tem um conteúdo moral ou constitui um valor moral, com isso afirma-se que o Direito vale no domínio da Moral, que o Direito é uma parte constitutiva da ordem moral, que o Direito é moral e, portanto, é por essência justo. Na medida em que uma tal tese vise uma justificação do Direito – e é este o seu sentido próprio -, tem de pressupor que apenas uma Moral que é a única válida, ou seja, uma Moral absoluta, fornece um valor moral absoluto e que só as normas que correspondam a esta Moral absoluta e, portanto, constituam o valor absoluto, podem ser consideradas "Direito". Quer dizer: parte-se de uma definição do Direito que o determina como parte da Moral, que identifica Direito e Justiça. [7]

De forma diversa, compreendendo a moralidade como contraposto da legalidade, pondera o sempre reflexivo Kant:

No reino dos fins, tudo tem ou um preço ou uma dignidade. Quando uma coisa tem preço, pode ser substituída por algo equivalente; por outro lado, a coisa que se acha acima de todo preço, e por isso não admite qualquer equivalência, compreende uma dignidade. (...) o que se faz condição para alguma coisa que seja fim em si mesma, isso não tem simplesmente valor relativo ou preço, mas um valor interno, e isso quer dizer, dignidade. Ora, a moralidade é a única condição que pode fazer de um ser racional um fim em si mesmos, pois só por ela lhe é possível ser membro legislador do reino dos fins. Por isso, a moralidade e a humanidade enquanto capaz de moralidade são as únicas coisas providas de dignidade[8]

É necessário compreender uma evolução desse pensamento, o modelo abstrato clássico. A noção de que o ser humano nunca poderá ser tratado como coisa, eis que obtém um fim em si mesmo de acordo com Kant, é sóbria, se mostra um conceito belo e justo, isso não se busca controverter, é apenas a noção desta ligação intrínseca, dessa busca pela moral absoluta desse mutualismo que muitas vezes é encontrado nas doutrinas clássicas e que não se adéquam ao modelo de Kelsen, do relativismo da moral e da justiça.
Sobre do que se trata o princípio da dignidade da pessoa humana, a partir da premissa que o ser humano, como fim de tudo, é um ente real cujas necessidades mínimas não podem estar sujeitas aos modelos abstratos tradicionais, pondera Jorge Miranda:

Em primeiro lugar, a dignidade da pessoa é da pessoa concreta, na sua vida real e quotidiana; não é de um ser ideal e abstrato. É o homem ou a mulher, tal como existe, que a ordem jurídica considera irredutível e insubstituível e cujos direitos fundamentais a Constituição enuncia e protege. Em todo o homem e em toda a mulher estão presentes todas as faculdades da humanidade. [9]

Neste diapasão, a respeito da não existência de justiça e moral absolutas, buscando conferir cientificidade ao Direito, Kelsen conclui:

Uma teoria dos valores relativista não significa – como muitas vezes erroneamente se entende – que não haja qualquer valor e, especialmente, que não haja qualquer Justiça. Significa, sim, que não há valores absolutos mas apenas valores relativos, que não existe uma Justiça absoluta mas apenas uma Justiça relativa, que os valores que nós constituímos através dos nossos atos produtores de normas e pomos na base dos nossos juízos de valor não podem apresentar-se com a pretensão de excluir a possibilidade de valores opostos.  [10]

Será mesmo que a ciência não é capaz de fazer este juízo, será que a convivência humana é dotada de tantas idiossincrasias que impede que uma decisão que não leva em consideração esses princípios seja adequada ao caso concreto, em que pese o conceito de dignidade da pessoa humana seja considerado relativo, não é possível objetivar os seus desígnios? Seria possível a prática da sociedade sem dogmas, aparando algumas arestas e fazendo as perguntas certas? O método científico empregado fazendo que posicionamentos culturais relativistas dêem lugar a uma síntese empírica dos fatos pode formar a base de uma decisão? Não de forma absoluta, como poucas coisas o são, mas cremos que sim.
Ademais, qual é o pressuposto de toda nossa ciência, de toda nossa necessidade de adquirir conhecimento, ora, é entender o universo! Se existe essa sanha de nós seres humanos de compreender o que está a nossa volta o motivo não é outro que não encontrar os significados, lidar com as situações que nos permeiam durante a nossa vida, deste modo, melhorando nossas condições, melhorando nossa qualidade de vida, alcançando o conceito de dignidade da pessoa humana de forma objetiva.
O direito natural, que muitas vezes se invoca a título de pressuposição é uma construção também, durante os séculos XVII e XVIII e posteriormente retomando sua força no século XX postula-se uma origem metafísico-religiosa ao direito natural, e nesse diapasão pergunto: O que significa esta pretensão, essa certeza, diante da indiferente explosão de uma super nova, a rigor, extinguindo errantes e transformando todo o seu redor em poeira?
O universo é indiferente aos nossos desígnios, como dizia Sagan, não passamos de um pálido ponto azul, nossos dilemas humanos, amor, dor, paz, guerra, prosperidade, miséria, ímpeto, medo, quietude, raiva, bem-estar, angústia, gozo, sofrimento, são infinitamente insignificantes ante a uma reflexão a respeito da grandeza do cosmos, portanto, o que realmente faz diferença é a forma como passamos esses efêmeros momentos, se os vivemos de uma forma digna, e se o nosso viver digno não impede o viver digno do nosso próximo.
Quando o magistrado concede um direito anteriormente negado ao ente humano através da parcela de poder concedida ao Judiciário e passa por cima, por exemplo, do entendimento do legislativo ou do executivo visando cumprir o princípio da dignidade da pessoa humana está valendo-se da objetividade da concepção de que não há nada mais importante do que o cumprimento de nossas necessidades fundamentais, pois é isso que nos diferencia de uma civilização retrógrada, que talvez nem devesse ter saído das águas.

2 DO CETICISMO FILOSÓFICO, A REALIDADE DO NOSSO DIREITO

Não basta apreciar a beleza de um jardim sem imaginar que há fadas nele? [11]

O cerne que não pode ser esquecido, o sustentáculo ao nosso ordenamento jurídico, o que de fato pode garantir que independente das circunstancias estaremos visando nenhuma outra coisa que não a justiça é a nossa memória. É nossa memória por que malgrado todo anteriormente exposto acerca das construções a respeito do direito natural, das causas primeiras, não sirva para nos dar uma resposta à origem do conceito da justeza dos nossos ideais, ao menos na subjetividade, pois, a seleção natural em vários casos demonstrou que àquele mais fraterno, altruísta, teve menos dificuldades para se adaptar e sobreviver, curioso, pois até o altruísmo nessa perspectiva revela-se como uma característica individualista; podemos inferir através dos acontecimentos do passado o que foi bom e o que foi deletério, parafraseando Orwell, quem controla o passado, controla o futuro.
A dignidade da pessoa humana, a visão objetiva deste princípio, essa reflexão de vanguarda que surge do âmago do espírito que criou nossa lei maior, nossa Constituição Federal, só se sustenta se tivermos em mente que, em verdade, não temos direito algum, o que temos são privilégios que, infelizmente, ante a conjuntura social que vivemos, ante ao espírito deste tempo que mina nossa confiança na justiça com o proceder lento e despercebido do cotidiano, têm se tornado cada vez menores e cada vez mais esquecidos.
O que dizer das marcas de sola que temos em nossos direitos pelo correr da história, falamos de um instituto independente, que foge da cognição completa, estritamente metafísico; por que é que ele só desaparece quando não lutamos por ele? Quando esquecemos que o que garante a sua existência é apenas nossa vontade, nossa memória de uma época sem sua guarida. A história humana está repleta de exemplos que seguem este rigor, o direito existe até que a conjuntura mude e seja necessário esquecê-lo por um momento para dar viés à vontade dos mais poderosos, quem duvidar poderá querer lembrar-se da situação dos japoneses norte-americanos em meio a segunda grande guerra em 1942, cidadãos que ante a desconfiança depositada em virtude dos acontecimentos no seu país, foram enviados aos “war relocation camps”, sem direito a advogado, devido processo legal, contraditório, ampla defesa, cidadãos norte-americanos que a rigor tiveram seus direitos suprimidos apenas por que seus ascendentes provinham de uma terra que no contexto era considerada ingrata, mas não é necessário ir tão longe, principalmente por que vivemos em um país onde a questão não é nem a supressão dos direitos mas o desconhecimento destas transgressões e principalmente, e ai em que pese abranger quase o todo, a indiferença ante esta situação.
Busca-se, de forma tola talvez, separar nitidamente o bom e o ruim, muitas pessoas não compreendem o tamanho do imbróglio que se agiganta, por este motivo surgem tentativas simplistas de resolução dos conflitos, via de regra, não seguem o espírito pragmático que é cerne das conclusões satisfatórias, o que existe são tentativas vans de reconstruir uma realidade que não existe há tempos, o conceito do homem bom e do homem ruim, essa ilusão que insiste e mostra-se sempre que possível, impede que, como dizia Nietzsche, reflitamos para além do bem e do mal, não somos de modo algum perfeitos, tudo aponta para que nunca de fato sejamos um dia, talvez fosse melhor que isso nunca acontecesse, e neste sentido cito a reflexão do nobre poeta, Fernando Pessoa, um trecho de sua obra onde, através de seu heterônimo Álvaro de Campos, fala a respeito desta tentativa contumaz de esquecer-se de toda vilania:

Toda a gente que eu conheço e que fala comigo
Nunca teve um ato ridículo, nunca sofreu enxovalho,
Nunca foi senão príncipe - todos eles príncipes - na vida...

Quem me dera ouvir de alguém a voz humana
Que confessasse não um pecado, mas uma infâmia;
Que contasse, não uma violência, mas uma cobardia!
Não, são todos o Ideal, se os oiço e me falam.
Quem há neste largo mundo que me confesse que uma vez foi vil?
Ó príncipes, meus irmãos,

Arre, estou farto de semideuses!
Onde é que há gente no mundo?[12]

É interessante como através da história repetem-se incessantemente os dilemas vividos, tantos anos de evolução, tanto tempo passado, tantos problemas antigos e sempre de uma maneira ou outra reencontrados:

É muito próprio do vulgo, mormente o que pulula nas cidades, desconfiar de quem o estima e ser ingênuo para com aqueles que o enganam. Atrair o pássaro com o apito ou o peixe com a isca do anzol é mais difícil que atrair o povo para a servidão, pois basta passar-lhes junto à boca um engodo insignificante.
É espantoso como eles se deixam levar pelas cócegas. Os teatros, os jogos, as farsas, os espetáculos, as feras exóticas, as medalhas, os quadros e outras bugigangas eram para os povos antigos engodos da servidão, preço da liberdade, instrumentos da tirania. Deste meio, desta prática, destes engodos se serviam os tiranos para manterem os antigos súditos sob o jugo. Os povos, assim ludibriados, achavam bonitos estes passatempos, divertiam-se com o vão prazer que lhes passava diante dos olhos e habituavam-se a servir com simplicidade igual, se bem que mais nociva, à das crianças que aprendem a ler atraídas pelas figuras coloridas dos livros iluminados.
Os tiranos romanos decretaram também na celebração freqüente das decenálias públicas, para as quais atraiam a canalha que põe acima de tudo os prazeres da boca. Nem o mais esclarecido de todos eles trocaria a malga da sopa pela liberdade da república de Platão. Os tiranos ofereciam o quarto de trigo, o sesteiro de vinho e o sestércio. E os vivas ao rei eram então coisa triste de ouvir. Não davam conta, os néscios, de que recuperavam dessa forma parte do que era seu e que não podia o tirano dar-lhes coisa que não lhes tivesse furtado antes. O que hoje ganhava o sestércio, o que se fartava de comer no festim público, louvando a grande liberalidade de Tibério e Nero, era no dia seguinte obrigado a entregar os seus haveres à avareza, os filhos da luxúria e o próprio sangue à crueldade daqueles magníficos imperadores, e fazia-o sem dizer palavra, mudo como uma pedra, quedo como um cepo. O povo sempre foi assim…[13]

O valor do nosso Direito que, antes de mais nada, trata-se de uma ideia, uma grande ideia diga-se de passagem, mas, reiterando, encontra-se na salubridade de nossa convivência, e não se pode de modo algum sacrificá-lo. Esse pressuposto, que deve sempre servir de guia para as decisões, a dignidade da pessoa humana, sobretudo nossa memória de quando isto não é levado em conta é o que torna digno dizermos que sim, existe o Direito, no entanto, será que isto é consoante à nossa realidade?

3 DA IMPORTANCIA DA DÚVIDA

Falar a respeito de um pensamento de vanguarda no tocante a interpretação do direito à luz do princípio da dignidade da pessoa humana, é dizer, não existe mais lugar para dogmatismo, não existe mais lugar para respeito automático, não existe mais lugar para quem se furta de julgar ou procrastina esse dever, é tempo de coragem na defesa do que acredita-se ser justo, ser razoável, malgrado como diria Kelsen, não exista um ideal de justeza absoluto, sabemos que aqueles que estão incorporados ao poder judiciário passam por verdadeira “prova de fogo” para estarem ali, porquanto ao menos ao espírito da época e guardado as devidas proporções, devemos acreditar nos nossos magistrados, no seu douto conhecimento.
Sabemos que é difícil aceitar essa proposição, isto é, vez ou outra nos deparamos com certas atitudes de quem tem poder de mudança que minam nossa esperança em um futuro bom, mas, saliente-se, que na grande maioria o que se vê são sujeitos de caráter soturno, manso, reflexivo e sinceramente altruísta, ocorre que, mesmo estes por vezes tem seu poder de mudança, de julgamento, suprimidos pelo sistema, pela conjuntura social deletéria que vivemos.

O juiz do trabalho José Ernesto Manzi apregoa que:

“A morosidade ou demora na outorga efetiva da prestação jurisdicional, com sua efetivação no mundo dos fatos, talvez tenha por origem remota a perda do caráter humano do processo. Quando a sociedade era menos complexa e as relações mais pessoais, as decisões refletiam essa filosofia...
O Direito está em crise, porque a ética e a moral também estão. O Judiciário, como instituição, está em crise, por que o próprio Estado está. A justiça é morosa e sua demora é, em si, causadora da injustiça, porém, a injustiça generalizada é a causa da morosidade judiciária. Contam-se com as dificuldades no acesso à justiça e a morosidade decorrente do excesso de processos para não se cumprir, voluntariamente, com as obrigações. O “vá procurar os seus direitos” tornou-se lugar comum. Perdeu-se a vergonha de se ver reconhecido pelo judiciário o abuso no pedir ou no resistir, como se fizesse parte de um jogo e como se não estivesse em discussão a própria postura ética das partes. O processo tornou-se um jogo de astúcias, em que o ganhador sentir-se-á mais vitorioso quanto menos razão possuía ao início.”.[14]

Ainda, conclui esclarecendo que:

A sociedade anseia por um Judiciário que atenda a seus reclamos de forma célere. A justiça deve ser cega, mas não pode mais ser surda, nem manca, pois com as três incapacidades terá que ser amparada, e não amparar (que é sua função).
As reclamações contra a ineficiência das leis de nada servem. Os operadores jurídicos devem formular propostas concretas de reformulação legislativa, pressionar os legisladores, informar a opinião pública e, enquanto não conseguem seus intentos, buscar soluções práticas para fazer com que a justiça não tarde, para que também não falhe. Recorda-se, para tanto, o antigo bordão da engenharia militar: Ante o impossível, tentaremos!!! [15]

A situação na qual nos deparamos nesse tempo que por vezes se demonstra vil é apenas um reflexo da perda do espírito fraterno deste tempo, do agigantamento do individualismo, da coroação à astúcia e falta de princípios inerentes as causas sem propósitos verdadeiros. Não podemos, ante a essa conjuntura ceder à inércia, malgrado nosso Direito seja digno de ser seguido como exemplo, em muitos aspectos,  sua aplicação plena se torna a cada dia mais difícil, pois, o sujeito de direitos está contido num contexto social e cultural retrógrado e especialmente, triste.
Portanto, é necessário dizer que, existem algumas situações em que talvez seja muita pretensão dizer que, a título de exemplo, a ciência não é capaz de fazer juízo de moral, data máxima vênia ao ideário do inigualável Kelsen, por quem temos imenso apreço, mas dizer isto significa dar as idiossincrasias humanas um caráter de extrema complexidade e importância que elas não possuem, não somos tão diferentes assim dos outros animais que povoam o planeta, ao contrário do que se pensa, o ser humano tem características que para um bom observador podem até ser consideradas simplistas, com o devido respeito, mas nosso polegar opositor, o uso de vestimentas e a capacidade de fala, o que muitas vezes trata-se da única diferença de alguns de nossa espécie para o restante dos outros animais não é o suficiente para nos revestir de tanta complexidade.
É evidente que, em alguns casos, existam sim diversos fatores que devem ser analisados tendo em vista a singularidade de um indivíduo, mas é incompreensível essa vênia excessiva, ao ponto de quase não existir análise, no tocante a abordagem de determinadas proposições, seja no campo das culturas, dos credos, do entendimento político. Muitas vezes nesse contexto vemos direitos fundamentais espezinhados mas que por se tratar da cultura, de credo, de ideologia política do indivíduo não são levados em consideração, as vezes não existe nem a percepção de que existem direitos sendo violados ali, tendo essa conjuntura revestido essa retrógrada visão com uma blindagem à analises críticas.
Sobre a ciência fazendo juízo de moral, objetivando quando possível o conceito da dignidade da pessoa humana é cediço que ainda existem muitas dúvidas sobre o valor e as consequências desta proposição, no entanto, a rigor, é plenamente precioso que elas existam, afinal, que outra coisa que não a dúvida, é o motor da própria ciência? Lembrando dos pensamentos de um dos mais velhos defensores das liberdades civis, Voltaire, sobre o fato de que a ignorância afirma ou nega veementemente, e a ciência sempre duvida, notório, pois, o duvidar é o que nos leva para além do óbvio, é o que nos faz sempre procurar a solução mais acertada, mais justa e sólida, sem apegar-se a dogmas, preconceitos, e pensamentos prontos.

CONCLUSÕES FINAIS

Quando na obra de Hermann Hesse, escritor alemão famoso por suas críticas ao militarismo de seu país de origem e interpretação das filosofias do oriente, contando a história ficta sobre a jornada à iluminação do Buda, seu personagem quando indagado sobre suas habilidades dizia que somente sabia pensar, esperar e jejuar, muitos de seus interlocutores julgavam insuficientes estes atributos, a contrario sensu quem conseguia enxergar a grandeza do pensar, isto é, a capacidade de refletir por si mesmo o levar de sua existência, julgar seus próprios atos e valorá-los, entender o esperar, pois, o universo nos é indiferente e a paciência é um atributo que nos dignifica e nos previne de cometer muitos erros, por fim, compreender o jejuar, que, a rigor, simboliza a privação dos seus próprios deleites em virtude da situação do seu próximo, da necessidade de durante essa privação poder entender as privações do outro, sabia que ali jazia poucos atributos que poderiam fazer a diferença no mundo todo. Nosso Direito, nossos operadores do Direito, em verdade todas as pessoas, mas buscando estreitar esta reflexão, para que nunca seja esquecido nenhum de nossos princípios norteadores, nossos direitos fundamentais, a dignidade do ente humano, precisam saber que em verdade antes do dogmatismo, do apego a norma positivada, dos conceitos já há muito pensados e repensados, precisamos ceder ao pragmatismo e sobretudo a interpretação de todo nosso ordenamento jurídico à luz da dignidade da pessoa humana objetivada, esquecer as consequências deletérias que muitas vezes vem juntamente com uma atitude corajosa e aprender a pensar, esperar e jejuar.

BIBLIOGRAFIA

KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994


KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003


CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra? : Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética, 8ª Ed. Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 2009


KANT, IMMANUEL, Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004


MIRANDA, Jorge Manual de direito constitucional, tomo IV, 2. ed. – Coimbra Editora


MANZI, José Ernesto, Da morosidade do poder judiciário e algumas possíveis soluções.


ADAMS, Douglas, O guia dos mochileiros das galáxias, Editora Sextante, 2004


PESSOA, Fernando Antonio Nogueira - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 418.


LA BOÉTIE, Etienne de – Discurso da Servidão voluntária – Martin Claret, pg. 19.


[1] Esta “SAUDAÇÃO”, redigida pelo Professor Goffredo Telles Júnior, foi lida pelo Prof. Sérgio Resende de Barros, da Faculdade de Direito do Largo de São Francisco, da Universidade de São Paulo, no Salão Nobre da Faculdade, em 26 de fevereiro de 2007. Disponível em: http://www.conjur.com.br/2009-jun-28/leia-discurso-goffredo-telles-jr-homenageou-goffredo-telles-jr

[2] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 74.

[3] KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 16.

[4] KELSEN, Hans. O Problema da Justiça. São Paulo: Martins Fontes, 2003, p. 17/18.

[5] CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra? : Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética, 8ª Ed. Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 2009, p. 106/107.

[6] CORTELLA, Mario Sergio. Qual é a tua obra? : Inquietações propositivas sobre gestão, liderança e ética, 8ª Ed. Petrópolis-RJ, Editora Vozes, 2009, p. 108

7] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 72.

[8] KANT, IMMANUEL, (16) Fundamentação da metafísica dos costumes e outros escritos, tradução de Leopoldo Holzbach, São Paulo: Martin Claret, 2004, p. 65

[9] MIRANDA, Jorge Manual de direito constitucional, tomo IV, 2. ed. – Coimbra Editora, 1993, p. 169.

[10] KELSEN, Hans. Teoria Pura do Direito. São Paulo: Martins Fontes, 1994, p. 76.

[11] ADAMS, Douglas, O guia dos mochileiros das galáxias – capítulo 16, pagina 91.

 [12] PESSOA, Fernando Antonio Nogueira, Poema em linha reta. "Fernando Pessoa - Obra Poética", Cia. José Aguilar Editora - Rio de Janeiro, 1972, pág. 418.

[13] LA BOÉTIE , Etienne de,  – Discurso da Servidão voluntária – Martin Claret, pg. 19.

[14] MANZI, José Ernesto. Da morosidade do Poder Judiciário e algumas possíveis soluções. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 337, 9 jun. 2004. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/5312.

[15] MANZI, José Ernesto. Da morosidade do Poder Judiciário e algumas possíveis soluções. Jus Navigandi, Teresina, ano 9, n. 337, 9 jun. 2004. Disponível em: http://jus.com.br/revista/texto/5312

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