quarta-feira, 30 de novembro de 2011

Fraternidade e Dignidade da pessoa humana são princípios herdados do cristianismo?

Há quem diga que os compromissos humanitários do Direito são prejudicados pela cultura cientificista que oprime o interprete da norma, sobretudo, inferindo que conceitos como o da fraternidade, dignidade da pessoa humana, são heranças religiosas, vejamos:

Buscar-se-á, inicialmente, encontrar a delimitação do conceito de dignidade da pessoa humana. Entendida como um valor inerente a todo e qualquer ser humano, integrando a sua própria natureza, a dignidade da pessoa humana tem as suas raízes – como já declinado – no ideário cristão e sempre associado ao conceito de pessoa.
Recorda Fernando Ferrei dos Santos, em valioso Artigo, que: o conceito de pessoa, como categoria espiritual, como subjetividade, que possui valor em si mesmo, como ser de fins absolutos, e que, em consequencias, é possuidor de direitos subjetivos ou direitos fundamentais e possui dignidade, surge com o Cristianismo, com a chamada filosofia patrística, sendo depois desenvolvida pelos escolásticos. (MACHADO, 2008. P. 94)

Antes de maiores apontamentos, insta dizer o que é filosofia patrística e quem são os escolásticos, pois bem, a filosofia patrística consiste em uma filosofia propagada por padres da igreja católica que eram responsáveis pela defesa ideológica da fé católica, isto é, propagar a tradição e estudar os dogmas da igreja. Não obstante, os escolásticos, eram estudiosos que tinham a sanha de aliar a fé cristã com o pensamento racional, tendo como grande defensor o padre Tomas de Aquino.
Passado esta explicação, podemos caminhar em um solo um pouco mais firme, voltemos, portanto, a exegese do tema proposto.
Dizer que nosso conceito de fraternidade e dignidade da pessoa humana tem raízes no pensamento cristão implica duas hipóteses, ignorância ou má-fé. Digo isto porque não se pode colher bons frutos de uma árvore envenenada, ainda, levantar uma premissa destas de forma altruística, não significa outra coisa que não desconhecimento dos pressupostos da própria fonte de informação.
Existe essa tendência associativa, ainda, devemos considerar que uma premissa falsa não significa uma conclusão falsa, o fato de um argumento ser válido não significa necessariamente que sua conclusão é verdadeira, pois pode ter partido de premissas falsas, isto é, se a premissa é verdadeira e a conclusão é falsa, a inferência para chegar ao resultado foi inválida ou ineficaz. Nesse diapasão, podemos concluir que, o argumento da doutrina cristã ter dado origem ao conceito de dignidade da pessoa humana e fraternidade pode ser valido, no entanto, a conclusão pode ou não ser verdadeira.

Analisemos se é verdadeira ou não.

Uma evidência, uma proposição, somente pode ser considerada válida se pode ser falseada, ainda, os resultados inerentes a investigação, a sujeição metodológica tem que ser iguais e observáveis, passíveis de reprodução perante todos, caso contrário, poderíamos considerar que o objeto estudado não existe ou ainda está fora de nossa esfera de compreensão.
Sabendo que não tratamos de uma proposição estritamente física, portanto, que também está contida na esfera da metafísica, não podemos simplesmente descartar a hipótese mediante a incoerência da fonte com a informação obtida, pois poderíamos cair na regra anteriormente citada, tendo uma fonte ilegítima que possui uma conclusão legítima, no entanto, podemos analisar esta referida conclusão, a dizer, que a dignidade humana e o princípio da fraternidade tem raízes cristãs e inferir se hoje os temos através destas citadas raízes ou se é fruto de alguma outra proposição.
Dado estas primeiras considerações, analisemos a fonte sob a qual, supostamente buscamos o norte para os conceitos de fraternidade e dignidade humana, a bíblia, sobretudo, o que podemos reunir de bons conselhos nela contidos:

Quando perguntado sob o que é necessário para herdar “vida eterna”, Jesus responde:

E, respondendo ele, disse: Amarás ao Senhor teu Deus de todo o teu coração, e de toda a tua alma, e de todas as tuas forças, e de todo o teu entendimento, e ao teu próximo como a ti mesmo. Lucas 10:27

Ainda, quanto aos bons conselhos:

Amai vossos inimigos, fazei o bem e emprestai sem esperar coisa alguma em troca. Será grande a vossa recompensa, e sereis filhos do Altíssimo. Mateus 5:44

Felizes os que promovem a paz, porque serão chamados filhos de Deus. Mateus 5:9


Certamente que disto, poderíamos, enfim, ter tido uma idéia inicial da base que nos daria inspiração para criação dos ideais de dignidade e fraternidade, no entanto, a fonte que nos dá essa informação, que nos dá esse bom conselho, é eivada de outros conselhos – por vezes exigências - que são frontalmente opostos a este, existe uma bipolaridade curiosa na Bíblia, vejamos:

 Mateus 10:34-35 – Não cuideis que vim trazer a paz à terra; não vim trazer paz, mas espada; Porque eu vim pôr em dissensão o homem contra seu pai, e a filha contra sua mãe, e a nora contra sua sogra.
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Lucas 12:47-48 – O servo que soube a vontade do seu senhor, e não se aprontou, nem fez conforme a sua vontade, será castigado com muitos açoites (pra mim, não é relato e sim ordem) mas o que não a soube, e fez coisas que mereciam castigo, com poucos açoites será castigado. Daquele a quem muito é dado, muito se lhe requererá; e a quem muito é confiado, mais ainda se lhe pedirá. (Escravidão era permitida por Jesus?).

Lucas 14:26 Se alguém vem a mim e não odiar (alguns dizem que não é “odiar”, mas “aborrecer”, só que o original em grego é “misei” e misei significa “odiar” mesmo) a seu pai, e mãe, e mulher, e filhos, e irmãos, e irmãs e ainda a sua própria vida, não pode ser meu discípulo.

Lucas 19:27 – Quanto, porém, a esses meus inimigos, que não quiseram que eu reinasse sobre eles, trazei-os aqui e executai-os na minha presença. (Absolutismo e pena de morte?)

Deuteronômio 23:1-2 – O homem, cujos testículos foram esmagados ou cortado o membro viril, não será admitido na assembléia do Senhor. O bastardo não entrará tampouco na assembléia do Senhor, mesmo até a décima geração. (lembrando que Jesus não era filho de José).

Êxodo 21:20 – Se alguém ferir a seu escravo ou a sua escrava com pau, e este morrer debaixo da sua mão, deve ser castigado; mas se sobreviver um ou dois dias, não será castigado; porque é sua propriedade.

Levítico 20-10 – Se um homem se deitar com outro homem, como se fosse mulher, ambos terão praticado abominação; devem ser mortos.

Filipenses 1:8 – Mas que importa? Contanto que Cristo seja anunciado de toda a maneira, ou com fingimento ou em verdade, nisso me regozijo, e me regozijarei ainda. (Uma espécie de legalização da mentira?).

Isaías 13:15-16 – Todo o que for achado será trespassado; e todo o que for apanhado, cairá à espada. E suas crianças serão despedaçadas perante os seus olhos; as suas casas serão saqueadas, e suas mulheres violadas.

Oséias 13:16 – Samária levará sobre si a sua culpa, porque se rebelou contra seu deus; cairá à espada; seus filhinhos serão despedaçados, e as suas mulheres grávidas serão fendidas. (Bíblia Sagrada Português – Inglês. Ed. Vida. 2003.)


Evidenciado essa bipolaridade, essas contradições, podemos concluir que, ao dizer que dessa fonte tiramos nossa noção de dignidade humana e fraternidade, ou a tiramos mediante uma leitura parcial e desordenada do livro, portanto, que não deve ser considerada, ou não é do cristianismo que brotam as raízes as quais procuramos.
Este livro cristão, por mais que tenha sim bons conselhos, não pode servir de cerne moral, isto é, diante das proposições acima citadas, isto seria uma afronta a decência humana, ademais, será que antes dele não possuíamos uma noção de fraternidade e dignidade humana? Tínhamos sim. É que, na natureza, isto se revela – como em quase totalidade dos casos – não como algo altruísta antes como um mutualismo fruto da nossa inteligência -, ser fraterno, preservar a dignidade do outro antes de uma boa atitude é uma necessidade, sobretudo, foi parte do nosso conjunto de atitudes que nos proporcionou sobreviver e evoluir ante o processo de seleção natural. Ser fraterno, preservar a dignidade do outro, cria uma comunidade forte, capaz de resistir as agruras de uma época em que a competição pela vida era muito severa e dependia de uma união da espécie, sob pena de engendrar sua extinção. O pequeno pássaro que limpa a bocarra do jacaré, os lobos que tornaram-se animais domésticos seguindo tribos humanas, enfim, melhor do que eu para explanar a relação de mutualismo, seria um biólogo, portanto, me valho da contribuição de um amigo que estuda no ramo:

''na natureza não existe altruísmo'', sempre teremos o mutualismo onde ambas espécies se beneficiam da relação, mas nunca existirão relações por bondade sem ter alguém sendo de fato beneficiado, direta ou indiretamente. Várias espécies evoluiram em conjunto com outras, por exemplo, polinizadores (flores e beija-flores, seus bicos mais longos ou curtos, variando com a flor que ele forrageia) e várias espécies de plantas disponibilizam néctar para seus polinizadores ''ahhh que lindo a plantinha da néctar pro bichinho'' NÃO, produzir néctar é caro para a planta e ela não o faria se não tivesse o interesse de se reproduzir, o inseto muitas vezes nem sabe que esta carregando pólen de uma planta pra outra, ''ajudando'' a planta. O velho e mais batido exemplo de mutualismo, pássaro palito e o jacaré, oras o pássaro palito não limpa os dentes do jacaré porque ele é bonzinho, ele o faz porque é mais fácil ficar na boca cheia de dente sujo do jacaré do que caçar seu alimento que exige um dispêndio energético muito grande por sinal, então ele come os restos que encontra ali. A bondade seria algo do ser humano, com seu telencéfalo altamente desenvolvido e seu polegar opositor, mas como ele não é evoluído o suficiente para fazer isso... (Vinicius Cardoso)

Podemos continuar achando que, certo momento decidimos mudar nosso posicionamento acerca da dignidade humana e fraternidade através de ideário de um livro qualquer? Ser fraterno, enxergar o ser humano com um fim em si mesmo, considerar a dignidade do próximo, tudo isto não está contido em virtudes altruísticas, antes, é uma necessidade.